Ghouls no século 19 parte 1: traje de passeio
- Julia Tuleski
- 20 de nov. de 2024
- 9 min de leitura
Por volta de 2022 a banda Ghost divulgou o novo visual de seus Nameless Ghouls, um visual com uma mistura de estética militar com Steampunk vitoriano. Sendo uma fã da banda e também uma costureira histórica pensei comigo mesma "preciso fazer um traje histórico inspirado nisso".

A capa azul e o colete foram os grandes chamarizes para embarcar nesse projeto de costura. Olhando para os ghouls não pude deixar de notar a semelhança da silhueta desse traje com a de dois trajes femininos do final do século 19: um traje de passeio de 1895 e um traje de ciclismo de 1890.
E foi assim que começou o planejamento para esses dois trajes. A idéia foi reconstruir o traje dos Ghouls usando uma modelagem histórica mas que ainda assim fosse ser reconhecido por quem conhece Ghost, e fico muito feliz em dizer que consegui atingir esse objetivo.
Traje de passeio

O traje de passeio era um traje elegante, porém mais simple do que um traje de jantar, destinado a ser usado fora de casa. Em 1895 tínhamos trajes que consistiam em uma camisa, colete, jaqueta em alguns casos e uma saia sem calda, mais curta em relação a outros trajes, para ser usada sem problemas nas ruas. Geralmente eram feitos em tecidos de cores mais escuras.

Acho que deu para perceber o motivo da minha inspiração não é mesmo? Usei moldes históricos como base da modelagem, fazendo alterações aqui e ali, para adequar o figurino de ghoulette a uma silhueta mais histórica. Então aqui vamos ao processo de confecção de cada peça que compõe esse traje de passeio trevoso.
Chemise e saia
A primeira peça que fiz para esse traje foi uma chemise do século 18. Mas Julia, se é um traje do século 19 por que você fez uma chemise do século 18? Pois então , essa foi uma das minha pequenas alterações. A banda usa no palco uma camisa de linho que é uma variação da popularmente popularmente conhecida "poet shirt", a "camisa de poeta",. Basicamente uma camisa com mangas mais bufantes e babas nos punhos e colarinho, o que também descreve uma chemise do século 18.
Por mais que eu ame as camisas femininas de 1895, com as mangas bufantes na proporção certa, eu queria algo que se assemelhasse mais ao que era usado pela banda, mas que também fosse uma peça de moda histórica. E o qual foi a peça que atendeu a todos esses requisitos? A chemise século 18.

1)Camisa feminina da década de 1890/ 2)Camisa usada pela banda/ 3) chemise séc. 18 Paulo Samu
A confecção da chemise foi um processo bem tranquilo, foram dois dias de trabalho entre modelagem e costura. As costuras estruturais foram feitas na máquina de costura utilizando a técnica de costura francesa, e os acabamentos, como casinhas de botão e finalização de costuras, feitos a mão. Como essa foi minha primeira vez costurando uma chemise é claro que tive algumas dificuldades, a principal delas foi a colocação dos gusets nos ombros (me senti completamente humilhada por dois triângulos de tecido kkkkkkk).
A modelagem dessa peça consiste em basicamente vários quadrados e retângulos de tecido que costurados juntos viram uma camisa. Aprendi a fazer essa chemise seguindo o tutorial do Paulo Samu disponível no YouTube , lá ele ensina de forma simples e prática como fazer uma chemise, dês de a modelagem até a costura e acabamentos, recomendo muito esse tutorial para quem quer aprender a confeccionar uma chemise. E esse foi o resultado do meu trabalho:

Para referência: tenho 1,60 de altura e medida de busto 83cm e consegui usar as mesmas médias que o Paulo mostra no vídeo, que dão as medidas que ele usa para o tamanho dele. Em mim ficou bem larga e confortável como eu queria, a única alteração que fiz foi no cumprimento da chemise, que no meu caso usei um retângulo de 1 metro para fazer. A respeito de tecidos, linho puro definitivamente não se encaixava no meu orçamento, mas eu ainda queria uma tecido com a textura semelhante a do linho. Minha escolha final foi o linhão, ou linho rústico em alguns lugares, um tecido 100% poliéster que fica com uma aparência semelhante ao linho, com um valor mais em conta e também o que eu tinha disponível. É um tecido que esquenta? Bastante, não vou negar. Em dias quentes é um sofrimento usar, mas no fim atingiu o objetivo que eu queria. E agora me tornei uma devota fiel do uso de chemises para tudo.
Saia de passeio
A saia nada mais foi do que uma saia de passeio simples, cortada em painéis, com aberturas pra incluir bolsos. O molde da saia se assemelha a trapézios e é bem simples de costurar. Para fazer essa saia utilizei 7 painéis, um frontal, dois laterais e 4 nas costas, dando o efeito de volume.


Nesse tipo de saia o painel frontal costuma ser o mais largo. Para calcular a largura de cada painel na cintura, usei meia medida de cintura e depois dividi por 3, assim tive a largura dos painéis frontal e lateral. Mas como o frontal é mais largo, tirei 2cm de cada painel lateral e adicionei ao frontal. Para os painéis das costas dividi meia medida de cintura por 2. Com dois painéis nas costas a saia já fecharia na minha cintura, mas para adicionar mais volume usei 4 painéis, fazendo pregas para ajustar na medida do cós.
A saia foi meio que um projeto de reciclagem. Usei um oxfordine preto que ganhei da minha avó e estava lá parado, e como forro usei um lençol de algodão que ninguém mais usava em casa. O detalhe sutil que eu amo nessa saia é o forro na cor azul para combinar com a capa e os esquema de cores utilizado na era Impera do Ghost.

Colete
O colete é definitivamente a estrela desse traje. De todas as peças essa foi a mais complexa e detalhada, e também a que mais tive orgulho. Dediquei quase 4 meses na produção deste colete,eses que envolveram modelagem, costura, bordado e até modelagem com massa epoxy.
Minha ideia era usar como base um molde de colete feminino da década de 1890 para manter a silhueta histórica e fazer algumas modificações para se assemelhar ao colete dos ghouls. O molde que usei foi de um colete de 1890, retirado do livro "The cutter's practical guide To the citing of ladie's garments".

O que obtive como resultado foi basicamente o colete dos ghouls um pouco mais curto e com uma cintura mais marcada, o que consegui obter adicionando cavas na área do busto, o que na modelagem original da banda não existe. Isso também ajudou a adaptar o colete para ser usado com um corset e o resto da lingerie de época por baixo.

Quebrei um pouco a cabeça fazendo essa modelagem, mas também me diverti muito. Foi um processo que envolveram vários testes em tecidos mais baratos antes de cortar no algodão cru e então no tecido final.

Agora sem mais delongas, vamos aos processos que envolveram a confecção desse colete.
Costura
Antes de começar a costurar de fato temos a escolha de tecidos. O colete original é confeccionado em um veludo brocado, mas como não tive acesso a nenhum tecido desse tipo (e nem ao tecido original que custa a bagatela de 42 dólares o metro) optei por usar um Jacquard, aquele de cortina mesmo, para o tecido principal já que ele também padrões desenhados na trama. Os dois painéis das costas são feita em tecido liso, utilizei retalhos de uma sarja pesada de algodão que tinha guardada em casa. O tecido tem uma textura e aparência lindos, mas no fim acabei não gostando tanto do caimento dele no colete, não ficou ruim, mas acho que poderia ter optado por un tecido mais leve. Finalizei com um forro em tricoline 100% algodão para dar um pouco mais de conforto térmico, já que o Jacquard além de ser de poliéster também tem a trama mais fechada, ou seja, esquenta bastante.

Utilizei a técnica de entretela total nesse projeto já que eu queria uma peça mais estruturada e que abraçasse mais o corpo, e o material escolhido para isso foi o algodão cru de gramatura média (174g/m²) que serviu muito bem para essa estruturação. A entretela é um passo muito importante na costura de certas peças, e a escolha correta do material é crucial para se obter uma peça bem estruturada e com bom caimento no final do processo. Aqui no blog do Costura Histérica temos um post sobre diferentes tipos de entretelas escrito pelo alfaiate Arthur Adams que vale muito a pena conferir.
As costuras estruturais foram feitas na máquina, mas alguns acabamentos não tem como fugir da boa e velha costura a mão, principalmente se falando em peças de alfaiataria. Tanto a entretela quanto o forro foram aplicados a mão para dar um acabamento mais limpo. No canal do Costura Histérica temos tutoriais tanto para a colocação de entretelas quanto de forros na maneira histórica, técnicas que utilizei neste colete.
Depois de tudo entretelado, costurado e com forro aplicado foi a vez de fazer um acabamento com um viés bem fino, feito com a mesma sarja que usei nos painéis das costas, que deu todo um charme para a peça.


Fivelas
Para fechar este colete temos três fivelas com um designs que lembra a arquitetura gótica, dando um toque bem único para a peça

Eu conheço pessoas que possuem uma impressora 3d e o arquivo das fivelas com quem eu poderia encomendar um conjunto? Conheço. Mas queme conhece sabe que eu adoro fazer as coisas na pura força da teimosia só para me desafia, então eu falei "vou fazer eu mesma".
Então lá fui eu, sem jeito nenhum para modelagem, modelar 3 fivelas em massa epoxy, uma massa que na minha opinião é horrível de trabalhar, mas que eu insisti mesmo assim.

Não ficou o trabalho mais fiel ao original, ficaram 1cm maior do que deveriam ser (o que deu uma diferença na hora de colocar no colete) mas fui eu quem fez e eu tenho muito orgulho delas. A primeira vez que usei esse traje foi logo após terminar as fivelas, sem nem fazer o bordado ainda.

Bordado
O bordado. Ahhh o bordado, minha especialização. Esse colete tem dois patches bordados maravilhosos nos ombros. Na hora de fazê-los pensei em procurar bordados feitos em máquina para comprar pronto, mas sinceramente, eu não me sentiria bem comigo mesma se não tivesse minha mão nesse bordado (e também não gostei de nenhuma das opções que eu vi). Saí então a procura de um risco para o bordado mas não encontrei nenhum pronto que me agradasse (sim, sou difícil de agradar), então a solução foi tirar meu próprio risco das referências com mais baixa qualidade possíveis.

Usei neste bordado uma técnica semelhante ao Golden Work Ingles, que consiste básicamente em criar uma base em relevo para depois vir com o fio do bordado por cima. Essa técnica cria um bordado tridimensional lindo e permite fazer vários detalhes. Para criar essa base utilizei fio de lã de várias espessuras e então para bordar por cima a linha de meada 100% algodão.
Foi um trabalho delicado que durou cerca de 2 duas semana para concluir os dois patches, e no fim fiquei muito feliz por ter optado pelo bordado a mão. Criou uma conexão ainda maior com a peça, sabendo que todos os processos foram feitos por mim, e também sinto que obtive um resultado melhor do que eu poderia ter com qualquer bordado eletrônico. E deixando de lado agora minha humildade, todos que viram esse bordado de perto ficaram de queixo caído e completamente incrédulos de que foi bordado a mão. Recebi muitos elogios por esse bordado, então me sinto no direito de exibir ele kkkkkkk.

E assim chegamos ao fim do colete. Não consigo nem descrever a alegria que foi vestir ele completo pela primeira vez e para uma ocasião muito especial, a estréia do filme Rite Here Rite Now. O fã de Ghost compartilha da empolgação que foi esse evento.


Capa
Chegando ao fim do traje de passeio, a última peça que temos é a capa. Foi essa peça que me atraiu no uniforme dos ghouls, para quem não me conhece sou apaixonada por capas e minha cor preferida é azul. Foi a combinação perfeita. A capa das ghoulettes é usada lateralmente, mas eu queria algo que pudesse ser usado normalmente no meu dia a dia, então usei como inspiração capas do final do século 19 que são minhas xodózinhas.

De todas as peças do traje a capa foi a mais simples de fazer. Modelo uma capa bem simples, um meio godê que fica com a parte da frente mais curta do que a das costas, o que eu acho simplesmente um charme. Para tecidos optei por usar gabardine, tanto de tecido principal como para forro, o que me deu uma capa corta ventos perfeita para o clima de outono. A gola estilo asa de morcego foi feita com a mesma sarja do colete e entretelada com uma camada de algodão cru e uma de feltro (a capa teve como entretela uma cortina de algodão por motivos de reciclagem de tecido). A capa foi a única peça do traje costurada inteira à mão.

E como último detalhe nessa capa, fiz ela de uma maneira que eu conseguisse tirar os cintos que seguram ela como uma capa lateral e trocar por um fecho para usá-la como capa comum. Usei colchetes de pressão para que essa troca fosse bem fácil e para que também ficasse discreto na capa e ninguém percebessem que estavam ali. E deu certo, duas capas em uma.

E assim nasceu uma Ghoullete no século 19. Uso esse traje de passeio com bastante frequência, (principalmente para ir em shows de bandas cover) ele serve também como a minha versão de camiseta de banda, já que brusinhas não fazem mais parte do meu guarda roupas.
Além desse traje também fiz um traje de ciclismo com mais alguns detalhes que ficarão para a parte dois, então para finalizar aqui vão algumas fotos desse traje em noites de doideira em shows da banda Ghost Br.


Ainda não tinha lido este artigo e estou chocada que a Júlia fez tudo deste figurino, até as fivelas. Gostei de saber mais das referências que ela usou. Uma verdadeira artista!